(Postado originalmente em 2003-04-28)
Tenho uma sugestão a fazer. O significado de século devia ser definido oficialmente como:Período com 100 anos, medido em relação ao ano atual
Isso porque sempre tem um pedante que te corrige quando você diz neste século. Ele responde, como se você não soubesse:
Este século começou em 2001. Você quer dizer no século passado.
Qualquer pessoa com um pouco de bom senso sabe que neste século significa "nos últimos 100 anos". Quando você diz que gosta de música do século passado, ninguém pensa no Michael Jackson. Ou nos Beatles. Na verdade ninguém pensa em nada, porque quase ninguém conhece a música do século* passado. Mas todo mundo sabe que você está se referindo à música antiga.
(* O meu lado matemático está me tentando a definir a palavra "século*", com um asterisco, como o século das pessoas de bom senso, e "século", sem asterisco, como o século formal. Mas não vou fazer isso.)
Aliás, século é uma palavra gozada. Às vezes a gente escreve ou fala muito uma palavra, e o significado dela começa a se diluir, já percebeu? Pra mim, século está quase virando um conjunto de seguidores usando óculos. Algo como um séquito de óculos. Melhor parar por aqui.
Principalmente porque quero passar para a reclamação seguinte. É quanto à minha palavra preferida, literalmente. Eu fico furioso cada vez que ela é mal utilizada. E ela é muito mal utilizada. Um tempo atrás eu li na revista INFO:
Se o seu computador não for o último modelo, você vai estar literalmente frito.
Fiquei imaginando o computador pegando fogo e queimando o dono. Mas aí não seria literalmente frito. Teria que vazar algum tipo de óleo pela casa, e o apartamento de baixo teria que se incendiar, aquecendo o óleo e fritando o usuário. Tudo isso porque o computador dele não era um Pentium IV útlimo modelo. Pena.
É compreensível o uso errôneo do literalmente. Mas é imperdoável. A vontade de se usar o literalmente vem do fato que essa é a palavra mais elaborada de toda a história da humanidade. É o ápice da comunicação, e por isso todos querem usá-la.
Você já pensou nos milhões de anos de evolução e comunicação para que a palavra literalmente aparecesse? Primeiro, é preciso uma espécie capaz de emiter sons. Ok, relativamente simples, desconsiderando todo o processo de como a vida surgiu inicialmente, como evoluiu, etc. Depois, é preciso que haja comunicação entre os indivíduos da espécie. Hmmm, já é mais complicado, mas acontece.
O difícil mesmo vem agora. O literalmente exige a existência de figuras de linguagem. É preciso que haja metáforas antes do literalmente aparecer. Para isso, precisamos de um cérebro capaz de fazer comparações e analogias. Precisamos de uma mente capaz de criar frases como:
Eu vou colocar a boca no trombone!
A pessoa que diz isso não está querendo dizer que vai colocar a boca em um instrumento musical mais conhecido por trombone. Ele está querendo dizer que vai reclamar, exigir seus direitos, etc. Provavelmente quando a expressão foi criada ela tinha algum sentido literal, mas com o tempo virou uma metáfora.
Você entende a analogia sem dificuldades, porque seu cérebro foi programado para isso. Um computador dificilmente entenderia. Imagine a complexidade do cérebro para poder entender analogias e metáforas. Eu ia fazer uma analogia para explicar melhor, mas não conheço nada igual assim na natureza. É uma capacidade única do ser humano, que mostra como somos versáteis a ponto de manipular as imagens do mundo que conhecemos.
Mas não pára por aí! O passo seguinte é que as metáforas têm que passar de boca em boca. Elas se mostram tão úteis que todo mundo começa a usá-las. Ninguém mais pensa na analogia, porque a frase em si ganha o significado, como uma meta-analogia. Quando dizemos duro como pedra, ninguém imagina uma pedra e pensa no quanto ela é dura. A expressão em si vira um sinônimo de muito duro.
Até que o momento mágico acontece. Milhões de anos de evolução finalmente fazem sentido. Alguém usa uma metáfora numa situação em que ela se aplica exatamente. É a situação que deu origem à frase. O filho pródigo que retorna. Imagine, na falta de um exemplo melhor, um tocador de trombone querendo tocar uma música de protesto. Ele diz:
Eu vou colocar a boca no trombone!
Nesse momento, alguém percebe a poesia. A expressão foi criada em algum canto remoto do planeta, ganhou o mundo, caiu na boca do povo (metaforicamente), até que um dia ela retornou ao ponto de partida. Ela foi usada na sentido literal. E essa pessoa iluminada simplesmente responde:
Literalmente.
Não é pra qualquer um! O literalmente exige perspicácia, e deve ser dito na hora certa! São raros os momentos em que a palavra pode ser usada. Um bom escritor, ao longo de sua vida literária, usa em média 15 vezes a palavra em suas obras. Saramago deve ter usado umas 20. Como eu disse, não é pra qualquer um.
Mas infelizmente tem gente que não merece usando o literalmente. E, ultimamente, a palavra tem ganhado o significado de metaforicamente! Como o literalmente é muito forte, e tem o significado de que a expressão é realmente verdadeira, as pessoas têm usado a palavra para reforçar frases que não tem o menor sentido literal.
A verdade é que não existe mais respeito pela palavra que representa o ápice da evolução humana. Uma palavra que demonstra toda a nossa engenhosidade, toda a complexidade do nosso cérebro e a capacidade de abstração e comunicação que o Homo sapiens tem. E isso me deixa puto da vida. Metaforicamente, é claro.